Luís Filipe Barreira: “Precisamos de estabilidade e consenso político”

A criação de um grupo de trabalho para desenvolver o modelo de internato de especialidade em enfermagem e a entrega da proposta de regime jurídico representam um marco histórico para a profissão, segundo o Bastonário da Ordem dos Enfermeiros, Luís Filipe Barreira. Em entrevista, defende a urgência de um consenso político duradouro no setor da saúde, a regulamentação da prescrição por enfermeiros e o reforço do papel destes profissionais, sublinhando a importância da presença internacional da enfermagem portuguesa para o reconhecimento e valorização da classe.

Perspetiva Atual: Nos últimos tempos falou-se muito do internato da especialidade em enfermagem. Que avanços concretos foram conseguidos neste tema e qual a importância desta formação especializada para os enfermeiros e para o Serviço Nacional de Saúde?

Luís Filipe Barreira: Conseguimos um avanço histórico com a criação de um grupo de trabalho para desenvolver o modelo de internato de especialidade em enfermagem. Entretanto, já entregámos a nossa proposta de regime jurídico. Pela primeira vez, estamos a caminho de uma formação especializada estruturada, com reconhecimento institucional e sem encargos financeiros injustos para os enfermeiros. Este internato representa mais do que justiça para a classe, é um investimento na qualidade dos cuidados, na resposta às complexidades atuais da saúde e na valorização profissional.

“As políticas de saúde não podem continuar a mudar ao sabor de cada ciclo eleitoral”.

PA: Considera que é urgente alcançar um consenso político alargado na área da saúde? Que riscos existem sem esse entendimento?

LFB: Precisamos de estabilidade e consenso político. As políticas de saúde não podem continuar a mudar ao sabor de cada ciclo eleitoral. Defendemos um compromisso político duradouro para a saúde, que transcenda governos. Só assim será possível implementar reformas estruturais com impacto real no sistema. As medidas mais importantes não podem ficar dependentes da agenda partidária do momento. Como tenho dito, as reformas na saúde têm de sair dos gabinetes e ser concretizadas, não podem continuar a ser adiadas ou interrompidas. Só com um consenso alargado será possível responder aos desafios complexos que enfrentamos e construir um SNS mais forte, sustentável e, sobretudo, centrado nas pessoas.

PA: Outra questão que tem referido em alguns momentos é a prescrição por enfermeiros. Em que ponto estamos nesse campo e qual é o impacto esperado de permitir que os enfermeiros prescrevam?

LFB: A prescrição por enfermeiros é um tema que encaramos como inevitável e necessário. Vale lembrar que a lei já prevê há anos a possibilidade de os enfermeiros prescreverem, mas nunca foi devidamente regulamentada e posta em prática. Ou seja, formamos enfermeiros altamente qualificados em Portugal e depois vemos esses profissionais a emigrar e a prescrever noutros países que os acolhem, como por exemplo em Espanha, enquanto em Portugal continuam impedidos de o fazer. Isso não faz sentido nenhum. Estamos a desperdiçar competências e a criar frustrações numa área em que poderíamos aumentar a autonomia e a eficácia dos cuidados de saúde. E isto poderia verificar-se na gestão da doença crónica, em casos de doença aguda, no acesso às urgências, com os enfermeiros a prescreverem meios complementares de diagnóstico e também em áreas especializadas como a saúde materna e obstétrica e a estomaterapia, só para dar alguns exemplos. Em muitos países desenvolvidos isto já é uma realidade consolidada, e Portugal não pode continuar a tratar este tema como tabu. Estamos a trabalhar para que esta regulamentação avance. Os enfermeiros estão prontos para assumir essa responsabilidade, com a segurança e qualidade que sempre colocamos no nosso trabalho.

PA: A gestão da doença crónica é apontada como uma área estratégica da enfermagem e importante para o SNS. O que é preciso fazer para reforçar o papel dos enfermeiros neste domínio?

LFB: A gestão da doença crónica é um dos grandes desafios e oportunidades da enfermagem, num contexto de envelhecimento da população e aumento das patologias crónicas. O modelo centrado nos hospitais está ultrapassado. É na comunidade e nos cuidados de proximidade que devemos investir. Os enfermeiros devem assumir um papel central como gestores de caso, acompanhando, intervindo preventivamente e coordenando cuidados com outras profissões de saúde. Precisamos reforçar as equipas nos cuidados de saúde primários, no domicílio e nas estruturas residenciais para pessoas idosas, garantindo um número suficiente de profissionais, condições de trabalho e dignidade nos cuidados. Valorizar os enfermeiros na gestão da doença crónica é fortalecer o SNS e melhorar a qualidade de vida da população.

PA: A Ordem dos Enfermeiros tem reforçado a sua presença internacional, nomeadamente no International Council of Nurses (ICN) e na European Federation of Nurses Associations (EFN). Qual a importância dessa participação em organismos internacionais para a enfermagem portuguesa?

LFB: A Enfermagem é uma profissão global e enfrenta desafios comuns em muitos países. Por isso, estar presente nos organismos internacionais como o ICN e a EFN é fundamental por várias razões. Em primeiro lugar, dá-nos voz e reconhecimento internacional. Quando a Ordem dos Enfermeiros de Portugal participa ativamente nestas organizações, estamos a afirmar que queremos contribuir para as decisões e estratégias que moldam o futuro da profissão a nível europeu e mundial. Por exemplo, há poucos dias participei na 120.ª Assembleia-Geral da EFN, em Bruxelas, onde representantes de toda a Europa debateram os grandes desafios da enfermagem​. Foi discutida a falta de profissionais, a violência contra enfermeiros, a integração segura da inteligência artificial na saúde, a cibersegurança nos sistemas de saúde, entre outros temas. Estes desafios não são só de Portugal. Ao articularmo-nos com os nossos pares europeus, conseguimos ter uma visão comum e também aprender com as soluções que outros países estão a implementar.

A articulação europeia e global através da EFN e do ICN valoriza a profissão e, consequentemente, os nossos enfermeiros. Dá-nos força acrescida para exigir cá dentro o que lá fora já se concluiu ser necessário – seja ao nível de rácios enfermeiro/doente, seja em novas competências. E também projetamos lá fora aquilo que de bom fazemos cá dentro. É uma via de dois sentidos muito enriquecedora. A enfermagem portuguesa tem muito a ganhar com esta presença: ganhamos reconhecimento, ganhamos conhecimento e ganhamos aliados na luta por causas que, no fundo, são universais na profissão.

PA: Quais são os principais objetivos estratégicos do seu mandato de Bastonário?

LFB: Os objetivos estratégicos do meu mandato centram-se no reforço do sistema de saúde através do papel fundamental dos enfermeiros e na valorização da profissão. Queremos ver concretizadas inúmeras medidas estruturais. Paralelamente, também damos prioridade à melhoria das condições de trabalho e das carreiras, o combate à precariedade e à desvalorização profissional, para travar a emigração e motivar os enfermeiros a permanecer no país. Apostamos também na formação e na investigação em enfermagem. Defendemos uma atuação baseada no diálogo e no consenso, com todos os stakeholders do setor, e apelamos a um cenário político estável que garanta reformas duradouras e consistentes para o futuro da saúde em Portugal.

PA: Para terminar, que mensagem gostaria de deixar aos enfermeiros portugueses, num momento em que a profissão enfrenta tantos desafios, mas também conquista novos avanços?

LFB: Quero, antes de mais, que sintam que a Ordem dos Enfermeiros é uma aliada incondicional. Estamos ao lado dos enfermeiros nesta luta pelo que é justo. Cada enfermeiro, seja qual for a função ou a região, deve saber que a sua Ordem está a trabalhar para melhorar as condições em que exerce e para elevar o prestígio da enfermagem. Convido-os também a continuar unidos e firmes. Muito do que alcançámos vem da força coletiva da nossa classe, da nossa persistência. Ainda há injustiças? Há, sem dúvida, e não as esquecemos. Mas estamos a enfrentá-las com coragem e convicção. Eu acredito que somos uma profissão com um enorme poder. Quando um enfermeiro se levanta todos os dias para cuidar, está a fazer a diferença na vida de alguém. E essa é a grandeza da nossa profissão.

“Valorizar os enfermeiros na gestão da doença crónica é fortalecer o SNS e melhorar a qualidade de vida da população”.

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