O impacto da investigação das Ciências Políticas na evolução governativa
Com origem na Universidade do Minho e estendendo-se de seguida para a Universidade de Évora, o CICP – Centro de Investigação em Ciência Política assume a missão de “falar verdade nas suas análises e interpretações”, contribuindo, assim, para a solução de problemas societários e para a evolução governativa nacional e internacional. Silvério Rocha Cunha, coordenador do polo da Universidade de Évora, deixa clara a importância da existência de centros de investigação dedicados às ciências políticas, pois eleva “a capacidade de uma sociedade se pensar a si mesma”.
Perspetiva Atual: Pode contar-nos um pouco da história da fundação do CICP? Por que motivos é tão importante a existência de um centro de investigação em ciência política?Silvério Rocha Cunha: O CICP tem na sua origem um centro de investigação sediado na Universidade do Minho – o “Núcleo de Investigação em Ciência Política e Relações Internacionais” – que, primeiro, se estendeu à Universidade de Évora, tendo sido depois fundido com um outro centro igualmente existente na Universidade do Minho, dedicado fundamentalmente ao estudo no âmbito das políticas públicas.
Ora, como as políticas públicas são uma área tradicional da ciência política faz todo o sentido ter recriado o centro com a atual designação. Este centro com dois polos integra, ainda, investigadores de outras universidades.
Mais importante do que o nome de um centro, é a sua razão de ser enquanto centro dedicado a essa área da ciência política que associa áreas temáticas mais amplas, tais como a cidadania, a paz e resolução de conflitos, a história política, as relações internacionais e os direitos humanos. Com efeito, a ciência política corresponde em grande medida ao que sempre constituiu uma preocupação das sociedades humanas minimamente organizadas: a interrogação sobre o melhor governo destas, bem como a análise dos fenómenos que de algum modo modificam, destroem e recriam formas de poder e regimes políticos. A política é como o ar: está em toda a parte. Tudo depende na vida das sociedades de opções políticas, que se baseiam em pressupostos parcialmente voluntaristas e de momentos que derivam de um imenso conglomerado histórico-cultural que as origina e nelas influi. É velha a frase de Aristóteles, segundo a qual o homem é um animal político porque sociável, logo, interdependente, tendo de cooperar com os seus semelhantes para sobreviver. Como se organiza para cooperar e porquê? Eis a grande questão que se coloca à ciência política. Neste sentido, até a frase “não quero saber da política” é uma grande afirmação política. Assim como uma outra célebre frase: “o pior castigo para quem não se interessa por política é o de vir a ser governado pelos que por ela se interessam”.
PA: Como descreve a missão atual do CICP?
SRC: O CICP tem como missão agregar, em investigação avançada e de alto nível, aqueles investigadores que, numa perspetiva científico-cultural, pretendem aprofundar um espectro largo de temas no âmbito da ciência política. Pretendemos ser inovadores e inter-paradigmáticos. E temos tido êxito nesta intenção, pois temos publicado investigação variada e que mereceu, até hoje, a avaliação de “excelente” em painel internacional. É, igualmente, um centro que resulta de um consórcio entre duas universidades públicas nacionais, onde surgiu um grupo de investigadores que colocaram em conjunto os seus esforços, capacidades e originalidade.
PA: Muitos foram os temas políticos nacionais e internacionais que deram que falar nestes últimos tempos: primeiro, a forma de governança em tempos de pandemia, depois a guerra da Rússia contra a Ucrânia e até mesmo a conjuntura política que se tem vivido no governo português. Qual é o papel que um centro de investigação destes domínios tem em ocasiões como as referidas?
SRC: O papel evidencia-se pela (e desenvolve-se sempre em) análise, interpretação e crítica da realidade que, como toda a gente sabe, depende sempre da junção de valores e ações que suscitam, naturalmente, a faculdade de julgar e avaliar essa mesma realidade. No nosso centro tivemos, assim, a ocasião de realizar colóquios internacionais em torno de temas tão importantes como a relação entre política e pandemias, o tema da governança mundial —cujos resultados foram e serão publicados em livros— e neste ano de 2023 iremos realizar um evento em torno da dicotomia paz/guerra.
PA: Um centro como o CICP tem o poder de ajudar diretamente ou dar apoio ao governo em situações de conflito, dúvida ou receio?
SRC: Um centro de investigação em ciência política tem uma função primeira: falar verdade nas suas análises e interpretações. E isso inclui falar verdade frente aos poderes constituídos. Esse é o maior apoio que se pode dar, pois é seu dever agir no âmbito de uma sociedade democrática e pluralista. Um centro de investigação em ciência política não deve transformar-se num vulgar “think tank”. Com isto quero dizer que deve albergar, de forma pluralista, posições que ajudem a formular juízos fundamentados sobre a realidade. E isso é fundamental em política. Porque evita a doutrinação da sociedade em torno de paradigmas dogmáticos. É óbvio que um centro de investigação universitário deve perseguir um escopo fundamental: integrar-se no âmbito das instituições que compõem o Estado Democrático Constitucional. Neste sentido, é claro que pode participar nas iniciativas públicas que contribuam para o debate e para a solução dos problemas societários.
PA: Que temas estão a ser estudados neste momento pela equipa do CICP e que problemas podem ajudar a resolver com esses estudos?
SRC: O polo de Évora do CICP dedica-se, por entre as suas múltiplas atividades, a estudar as grandes dinâmicas globais que existem, bem como o papel da União Europeia nessas dinâmicas. O que implica estudos em torno do funcionamento e do futuro da União, bem como estudos sobre as relações de poder e a manutenção dos direitos num mundo cada vez mais funcionalmente globalizado, embora cada vez menos humanizado. Este é um dos grandes desafios do nosso tempo.
PA: Que vantagens podem ser atribuídas a um país que invista em centros de investigação das áreas da Ciência Política?
SRC: Entendamo-nos desde logo: o estudo da ciência política, em sentido lato, contribui para o mais importante – a capacidade de uma sociedade se pensar a si mesma. Se o não fizer, qualquer sistema social e político se torna débil, incapaz de evoluir, podendo mesmo colapsar. E contribui igualmente para a educação cívica de um país, logo, para criar horizontes e ideários para uma sociedade que sofre, hoje, desafios inéditos. Bastará lembrar a relação da Inteligência Artificial com as liberdades, ou os dilemas que se colocam às sociedades que, com imensa high-tech, estão no entanto à mercê de riscos que julgavam impossíveis, precisamente porque se julgavam invulneráveis graças a essa mesma tecnologia.
PA: Quais são os grandes desafios enfrentados pelo CICP na sua área de trabalho e de que forma é que esses desafios são combatidos?
SRC: De algum modo, já os referi anteriormente. Estudo, análise, interpretação e crítica do realmente existente. Mas os desafios são hoje especiais e mais dramáticos. Na verdade, encontramo-nos num momento único da História humana: uma Terra que é uma “Cidade Terrestre”, com oito mil milhões de habitantes, em muitos aspetos esgotada pela própria civilização, por entre culturas que facilmente recorrem a arcaísmos e liturgias guerreiras, mas que sabe que apenas um novo paradigma poderá salvá-la, mas que, infelizmente, ainda não chegou a consenso sobre os seus eixos fundamentais. Ora, como debater o existente e intentar novas tentativas de solução? Essa tarefa é, eminentemente, política. Sempre foi. A diferença é que, atualmente, enfrentamos desafios radicais, isto é, que nos forçam a ir até à raiz das coisas, incluindo dos humanos. Temos, por isso, de estudar novas formas de pactos, normas, princípios, que nos confiram sentido de evolução e de civilização. Temos de, a um tempo, “progredir” em todos os campos e saber “regressar” ao que é originário e que faz de nós intrinsecamente humanos. A grande antropóloga Margaret Mead (1901-1978) respondeu um dia, quando perguntada sobre qual o primeiro grande sinal de civilização que tinha encontrado nas suas investigações, que fora o vestígio de um fémur curado, pois este vestígio demonstrava que há uns 15 mil anos alguém tinha ficado ferido e que um outro tinha tratado, abrigado e alimentado esse ferido, não o abandonando. Isto é o que faz parte do nosso melhor – saber identificar-nos uns com os outros. Mas é igualmente certo que, pelo meio, conhecemos guerras e horrores que se repetem século após século. Por que somos como somos? Sofisticados e simplificadores, humanistas e bárbaros, tolerantes e fundamentalistas, atomizados e com grandes sentimentos de pertença… Compreender esta duplicidade é função do pensamento político em sentido lato. Está tudo dito sobre a natureza dos nossos desafios.