A intervenção de Enfermeiros de Estomaterapia no cuidado à pessoa com ostomia
As ostomias estão cada vez mais presentes na nossa sociedade, nas diferentes etapas do ciclo de vida e contextos sociais. Podem ter um caráter temporário ou definitivo e com função respiratória, de alimentação ou de eliminação.
Uma Ostomia é um procedimento cirúrgico que consiste na exteriorização de órgãos ou vísceras para o exterior através de uma abertura (Estoma). A sua construção está maioritariamente associada ao tratamento de doenças oncológicas, embora existam múltiplas indicações para a construção de ostomias. As cerca de 20 000 pessoas que vivem com ostomia em Portugal, fazem parte do nosso circulo de amigos, família, colegas ou vizinhos.
Esta é uma condição cuja integração no “eu” é realizada lentamente, no dia a dia, de acordo com as vivências individuais e com a interpretação da significância das perdas inerentes, no autoconceito individual. É uma condição cujos portadores tendem a manter velada e que se pretende de forma transversal, que seja a mais temporária e discreta possível, pelo impacto que tem ao nível da função, imagem corporal e autocontrolo.
Os cuidados à pessoa com ostomia surgem pela primeira vez descritos a nível mundial em Cleveland nos EUA em 1961, pela mão de Norma Gil. Curiosamente, Norma Gil foi convidada a fazer parte das equipas de cuidados do hospital, onde tinha sido operada e ficado com uma ileostomia. O conhecimento próprio das necessidades vividas como pessoa com ostomia e as suas caraterísticas humanas, tornaram-na num marco na reabilitação das pessoas com ostomia e na historia da Estomaterapia.
Em Portugal, nas décadas de 80 e 90, as necessidades de cuidados expressas e sentidas por parte dos enfermeiros, de doentes e famílias e das equipas cirúrgicas eram significativas, pressionando as enfermeiras de contextos cirúrgicos hospitalares, com maior envolvimento e dedicação a esta área de cuidados, a procurar formação no exterior e a participar neste movimento internacional, trazendo para Portugal competências que lhes permitisse dar resposta às grandes dificuldades pelas quais as pessoas com ostomia passavam.
A atividade assistencial de Enfermagem em Estomaterapia inicia-se formalmente em 1991, com a abertura das primeiras consultas de Estomaterapia, com um número muito reduzido de enfermeiras, que sendo pioneiras assumiram o exercício e a formação da Enfermagem em Estomaterapia em Portugal.
Foram estas enfermeiras que tomaram também em si a missão de construir uma associação, com o objetivo de congregar e representar os enfermeiros desta área de cuidados e desenvolver a Estomaterapia em Portugal através da formação contínua e permanente e da promoção e divulgação de iniciativas de carácter educativo, técnico, científico, investigacional, cultural e ético e contribuir desta forma ativamente para a melhoria da qualidade dos cuidados prestados à pessoa com ostomia.
Nascida a 18 de janeiro de 2005, a Associação Portuguesa de Enfermeiros de Cuidados em Estomaterapia (APECE) tem cumprido a sua missão agregando atualmente mais de 400 enfermeiros com interesse e dedicação a esta área de cuidados. Construiu a sua credibilidade junto dos pares, ganhando representatividade nacional e junto da tutela com participação ativa nos processos nacionais de normalização e orientação clinicas da DGS -11/2016[1];12/2016[2];14/2016[3] e 15/2016[4]; na restruturação do regime de comparticipação dos dispositivos de ostomia (2017); na regulamentação para a certificação de competências acrescidas em Estomaterapia – Regulamento nº 398/2019 da Ordem dos Enfermeiros, publicado no Diário da Republica nº86, 2ª serie de 6 de maio de 2019.[5] -; e na promoção da literacia em saúde através de plataformas e-health, com a criação em 2020 da aplicação AppOstomia de download gratuito, para uma cidadania inclusiva.
Estudos académicos recentes demonstram a evidência de ganhos económicos associados à educação avançada em Estomaterapia e à correspondente diminuição de complicações associadas à ostomia, diminuição de custos diretos e indiretos e perceção de criação de valor em saúde. A intervenção de Enfermeiros de Estomaterapia é facilitadora do processo de adaptação e melhoria da qualidade de vida.
Os últimos anos traduziram-se por um intenso trabalho de afirmação da Enfermagem de Estomaterapia, por parte da APECE, dos seus associados e parceiros, com a promoção de Congressos Nacionais de Estomaterapia anuais, participação em organizações e painéis de discussão internacionais, participação em atividades cientificas e formativas a nível regional, nacional e internacional e promoção de iniciativas de valorização da Estomaterapia, o que culminou com o reconhecimento do Enfermeiro com Prática Diferenciada e Avançada em Estomaterapia pela Ordem do Enfermeiros, que aprovou o projeto de Regulamento da Competência em Estomaterapia e definiu o perfil, os domínios e as unidades de competência do Enfermeiro de Estomaterapia.
A capacitação da pessoa com ostomia para o autocuidado, no contexto hospitalar, e na transição segura de cuidados para a comunidade, bem como a continuidade dos cuidados ao nível da comunidade, carece de implementação de praticas clínicas e organizacionais, que contribuam para a fluidez e eficiência dos processos.
As parcerias e as sinergias resultantes de colaborações com associações profissionais nacionais e internacionais e instituições académicas, permitem aos enfermeiros de Estomaterapia produzirem investigação, publicarem e darem visibilidade ao conhecimento em Enfermagem e contribuírem significativamente para a uniformização, replicabilidade e transversalidade das boas práticas.
Existe, no entanto, ainda uma carência notória na oferta de cuidados de Estomaterapia a nível hospitalar, mas principalmente ao nível dos cuidados de saúde primários e da rede nacional de cuidados continuados, onde não tem havido por parte das ARS a nível nacional, o investimento necessário para a diferenciação dos seus profissionais nesta área de competências.
A aposta no desenvolvimento profissional dos enfermeiros de cuidados à pessoa com ostomia através do reconhecimento da formação e da experiência profissional tal como preconizados no processo de certificação de competências, faz-nos acreditar numa Enfermagem de Estomaterapia em Portugal mais robusta, capaz de incorporar a evidência cientifica na reflexão e na tomada de decisão com afirmação desse grupo profissional entre pares e nas equipes multiprofissionais.
O Congresso Nacional de Estomaterapia APECE 2023, com o tema” Gestão integrada de saberes”, que se realizará nos dias 24 e 25 de fevereiro, no Business Center- Hotel MH Atlântico em Peniche, promove uma vez mais a concentração dos Enfermeiros de cuidados em Estomaterapia nacionais num esforço conjunto para a construção de processos de melhoria contínua, parcerias, benchmarking e divulgação científica de resultados sensíveis à prática da enfermagem de Estomaterapia. O Congresso presenta um programa transversal às áreas do exercício da prática, da investigação e da gestão de cuidados com a participação de peritos nacionais e internacionais, referência nas suas áreas, que nos apresentarão diversas dimensões integradas no cuidado à pessoa com ostomia, potenciando o conhecimento, a reflexão e a integração de saberes para a constante melhoria da qualidade dos cuidados em Estomaterapia.
[1] https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0112016-de-28102016.aspx
[2] https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0122016-de-28102016.aspx
[3] https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0142016-de-28102016.aspx
[4] https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0152016-de-28102016.aspx
[5] https://dre.pt/dre/detalhe/regulamento/398-2019-122229322