Papel da Sociedade Portuguesa de Cardiologia na saúde cardiovascular do século XXI 

A Cardiologia em Portugal enfrenta vários desafios, desde as longas listas de espera para consultas e cirurgias até à escassez de profissionais de saúde e recursos. Neste artigo, o presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Hélder Pereira, discute as medidas necessárias para abordar esta situação e garantir que todos os pacientes recebam o cuidado de que precisam. Além disso, exploramos o motivo pelo qual a SPC considera a formação e investigação pilares cruciais para a promoção da saúde cardiovascular em Portugal.  

A Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) tem uma história longa e marcante na promoção da saúde cardiovascular em Portugal desde a sua fundação em 1949. Pode explicar de que maneira a SPC contribuiu para essa promoção ao longo dos anos? 

É verdade, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia comemora o seu 75.º aniversário no próximo ano. Este legado de ilustres figuras da medicina portuguesa possibilitou que a SPC tenha contribuído para a formação pós-graduada dos cardiologistas, cardiologistas pediátricos e cirurgiões cardíacos ao longo de décadas. 

Assumiu a presidência da SPC com a promessa de “manter a visão estratégica centrada na formação e promoção da investigação e inovação”. Pode compartilhar por que motivos considera esses dois pilares cruciais como parte da visão estratégica da SPC? 

A missão da SPC é zelar pela saúde cardiovascular dos portugueses. Em todas as áreas, em geral, a educação e a formação são essenciais para manter os mais elevados padrões de qualidade. A evolução técnica e científica, em matéria de doenças cardiovasculares, tem tido uma evolução impressionante, o que obriga os profissionais a uma atualização intensa e constante. Por outro lado, a investigação poderá ser uma das principais formas de assegurar a sustentabilidade da própria Sociedade, visto ser um importante pilar na qualidade da medicina que praticamos. 

Na mensagem que escreveu quando assumiu a presidência da Sociedade, refere que apesar do sucesso já alcançado em relação a estas duas vertentes, ainda está longe daquilo que ambicionam e que é “possivelmente o processo mais desafiante” a que se propõem. Quais são as ambições desta nova direção da SPC? 

Quando me referia ao mais desafiante, estava sobretudo a pensar na investigação e nos registos clínicos. Na área da formação, a SPC, através da Academia Cardiovascular, atingiu um patamar de maturidade e de qualidade tais, que, hoje, será o principal veículo de ensino pós-graduado das doenças cardiovasculares em Portugal. Mesmo assim, devemos ser ambiciosos e desejar ainda mais, nomeadamente, darmos os primeiros passos na implementação da simulação. As técnicas invasivas e de imagiologia têm, presentemente, simuladores de alta precisão que possibilita um treino que permite passar à prática direta com o doente com um grau de diferenciação que anteriormente só se atingia treinando diretamente no paciente. Também para a recertificação, a simulação é muito importante. Esta é uma área em que a aviação está várias décadas à nossa frente. Outra vertente em que a Academia Cardiovascular se pode desenvolver é no alargamento da sua atividade além-fronteiras, em particular com parcerias com os países de língua portuguesa. Presentemente, a internet de alta velocidade permite um contacto fácil e de alta qualidade, sobretudo na área da imagem, o que facilitará muito o intercâmbio de informação.  

Todavia, como humanos que somos, o contato direto tem outra dimensão e sempre que possível deverá ser privilegiado. Recentemente tivemos uma experiência que nos marcou a todos, a iniciativa “Coração por Moçambique”. Sob a orientação do Professor Victor Gil, mais de uma dezena de jovens cardiologistas deslocou-se a Moçambique, numa ação humanitária, com o objetivo de avaliar doentes, mas sobretudo de formar colegas locais. Foi uma iniciativa de sucesso a todos os níveis. 

Mas, como inicialmente comecei por dizer, o principal desafio está na investigação. Embora reconheça que Portugal tem tido um grande desenvolvimento nesta área, seja ela clínica ou nas ciências básicas, sobretudo através da Academia, a verdade é que o investimento é ainda muito diminuto e os nossos investigadores lutam com grandes dificuldades na obtenção de fundos para os seus projetos e muitas vezes os melhores têm que emigrar para se conseguirem realizar em plenitude.  A investigação clínica, ao nível dos hospitais, também é extremamente difícil devido à enorme carga de trabalho clínico e porque a maioria dos profissionais obriga-se a não ter atividade exclusiva nos hospitais onde trabalha, devido às baixas remunerações dos profissionais de saúde no setor público. Não podemos competir com a maioria dos países europeus em que o trabalho é mais organizado e valorizado e que sobra tempo para a atividade de investigação.  

Assim sendo, penso que onde podemos fazer a diferença será nos registos clínicos. A Sociedade Portuguesa de Cardiologia dispõe de um centro, em Coimbra, o CNCDC, dedicado aos registos na área das doenças cardiovasculares e recentemente evoluiu para um biobanco, um passo muito importante na investigação. Estamos já num alto patamar, mas temos que ambicionar por nos aproximarmos do melhor que se faz a nível europeu porque temos condições para isso. Pode parecer uma tarefa fácil, mas não é, pois depende não só da direção da SPC, mas também dos profissionais que estão no terreno e da tutela. 

Ao longo dos anos foram tentadas várias fórmulas para que, a nível dos hospitais, se conseguissem registos de qualidade, nomeadamente no que concerne ao lançamento de dados no seguimento dos doentes. A verdade é que essas fórmulas têm falhado e a principal causa reside em serem baseadas no voluntariado. Na minha opinião, só teremos sucesso se profissionalizarmos essa atividade, isto é, passar a ser uma atividade remunerada. É assim que funciona nos países nórdicos que apresentam registos de alta qualidade.  

Outro grande obstáculo à qualidade dos registos resulta do desinteresse da tutela. Durante vários anos tive responsabilidades na direção da nossa Associação de Cardiologia de Intervenção (APIC) e tentei demonstrar o interesse em que o Ministério da Saúde fosse um parceiro nos registos, como acontece noutros países como, por exemplo, a Dinamarca e a Suécia. Esta direção não irá deixar de insistir nesta temática, não apenas porque só a tutela tem os instrumentos que necessitamos para o sucesso, designadamente de os tornar obrigatórios, como também será muito importante investir nestas bases de dados, como está previsto no PRR. 

A prevenção e sensibilização para doenças cardiovasculares é um dos trabalhos mais importantes da comunidade médica e científica. Como é que a Sociedade Portuguesa de Cardiologia atua neste sentido? 

É reconhecido que os portugueses ainda têm uma deficiente literacia relativamente aos temas da saúde, em geral, e das doenças cardiovasculares, em particular. Há anos realizamos um inquérito nacional sobre o enfarte do miocárdio onde isso ficou bem patente. Em parceria com a Sociedade Portuguesa de Literacia, estamos a desenvolver projetos que pretendem sensibilizar a população para a temática das doenças cardiovasculares. Mas não será só com a comunidade que temos que comunicar. Embora as doenças cardiovasculares representem a principal causa de morte na Europa, a perceção que temos é a de que os próprios media estão mais focados em outras patologias. 

Outra vertente, não menos importante que a prevenção, é a reabilitação. Todos, inclusivamente a classe médica, estamos muito focados na medicina curativa e estamos esquecidos de quão importante é reabilitar. Portugal é um dos países europeus com um dos mais baixos índices de reabilitação. Os doentes internados por doenças cardiovasculares, deveriam iniciar precocemente um programa de reabilitação, algo que presentemente só oferecemos a menos de 10% desses doentes. É nossa obrigação colocar a reabilitação na agenda, com o ideal de que todos os que necessitam tenham acesso a esses programas. 

No final de agosto aconteceu o ESC Congress 2023 (Congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia), em Amesterdão, do qual a SPC também participou. O que representa esta participação para a Sociedade e para a comunidade médica portuguesa? 

Portugal é um país europeu e deverá estar integrado numa estrutura tão importante como é a Sociedade Europeia de Cardiologia. É com grande orgulho que assinalamos que um português, o Professor Fausto Pinto, já presidiu esta organização e que temos muitos outros colegas integrados nas várias estruturas da SEC, onde desenvolvem trabalho de grande relevo.  

As longas listas de espera para consultas ou cirurgias, no Serviço Nacional de Saúde, estão a deixar em suspenso milhares de pessoas que precisam de cuidados. Na perspetiva da SPC, que medidas são necessárias para abordar essa situação e garantir que todos os pacientes recebam o cuidado de que precisam? 

Sejamos claros, não estamos a dar a resposta que a população necessita e existe uma grande iniquidade territorial entre regiões, designadamente entre o litoral e o interior. No momento em que estou a dar esta entrevista, o SNS atravessa uma crise provavelmente de dimensões nunca antes vistas, com a recusa, em “bola de neve”, dos médicos em fazerem mais das 150 horas extraordinárias previstas por lei. Assistimos à interrupção da Via Verde Coronária, por falta de apoio logístico de cardiologia e da medicina interna e intensiva, algo que penso nunca ter acontecido ao longo de mais de duas décadas da Via Verde. Temos confiança no diálogo e pensamos que esta crise aguda será rapidamente ultrapassada, caso contrário estamos a recuar décadas. 

Bem recentemente ouvimos falar no “país oficial” e no “país real”. Na verdade, a mensagem que nos é passada é de que nos últimos anos tem havido maior investimento na saúde. Mas, na verdade, quem está no terreno, o que observa é que a maioria das nossas instituições hospitalares está antiquada e subdimensionada, muitas delas a recorrer a pré-fabricados para obter mais espaço, a par de muitos dos equipamentos estarem obsoletos e serem insuficientes. Esta problemática é crítica na cardiologia. A título de exemplo, a TAC e a Ressonância Magnética são instrumentos essenciais para o diagnóstico dos nossos doentes, sendo que em Portugal, ao contrário da maioria dos países europeus, temos um acesso restrito, quer a nível hospitalar, quer a nível do ambulatório, a essas tecnologias. Acresce-se que a Medicina Geral e Familiar também não tem acesso a análises e exames que são essenciais para a referenciação dos doentes para cardiologia. Se juntarmos a isto à escassez de profissionais de saúde, temos a tempestade perfeita para não darmos uma resposta minimamente satisfatória à necessidade dos doentes portugueses.  

A SPC está a tentar melhorar este cenário em duas vertentes: solicitar reuniões com a tutela para discutir como é que, na prática, todos poderemos contribuir para ultrapassar estas barreiras; e, programar melhores parcerias com a Medicina Geral e Familiar para conseguirmos combater as listas de espera para consultas. 

Outro tipo de listas de espera são as da cardiologia de intervenção e da cirurgia cardíaca. A situação mais crítica é a dos doentes que sofrem de doença da válvula aórtica, onde os doentes em lista de espera têm uma mortalidade percentual ao nível dos dois dígitos. Nesta área, temos propostas concretas, algumas já em fase de implementação, para uma resposta mais célere e que mantenha os altos níveis de qualidade a que a nossa cardiologia nos habituou. 

Além das listas de espera, quais diria serem os grandes desafios atuais na área da Cardiologia e qual é o papel da SPC na resolução dos mesmos? 

Penso ser saudável e até positivo a coexistência de um sistema de saúde público e privado. O que me preocupa é o desinvestimento que o Estado, ao longo dos últimos anos, tem feito no SNS. A maioria dos portugueses não tem condições para ser seguido no setor privado, pelo que considero preocupante assistirmos à crescente degradação do SNS.  

Se, no caso das infraestruturas, podemos considerar que a curto ou médio prazo poderemos recuperar, já nos recursos humanos a situação é bem mais problemática. A crescente saída de profissionais para o privado e para o estrangeiro põe em risco a qualidade da medicina que, até há bem poucos anos, tínhamos em Portugal. As atuais equipas estão a ser levadas ao limite e teme-se que, para colmatar esses déficits, se tenha a tentação de formar rapidamente e sem qualidade ou recrutar recursos com formação muito inferior à que as faculdades portuguesas praticam. 

Temos a felicidade dos jovens internos de cardiologia serem extremamente dedicados e com alta competência. Tudo temos que fazer para os manter nos nossos hospitais. Choca-me quando oiço opinar que os internos deveriam, contratualmente, permanecer uns anos no SNS para compensar os anos de formação. Só pode fazer uma proposta destas quem não tem a mínima noção que os serviços estão absolutamente dependentes do seu trabalho e que no final do internato nada devem ao sistema. Temos, sim, que contribuir para criar condições para que eles permaneçam no SNS. 

A Cardiologia tem se beneficiado enormemente do desenvolvimento de novas tecnologias. Quais procedimentos e técnicas mais recentes considera que revigoraram a prática de cardiologistas em todo o mundo? 

Recentemente têm surgido fármacos muito inovadores em várias áreas da cardiologia, nomeadamente no controlo do colesterol, na insuficiência cardíaca, na diabetes, nas doenças do músculo cardíaco, etc. Além das moléculas clássicas da farmacologia, existem hoje fármacos biológicos inovadores. O passo seguinte será a via genética, que já é uma abordagem promissora para o diagnóstico e tratamento de doenças cardíacas hereditárias. No futuro próximo, será inclusivamente possível desenvolver terapêuticas que possam corrigir ou modular os genes. 

Por outro lado, observam-se importantes desenvolvimentos na área dos dispositivos médicos implantáveis.  Os avanços tecnológicos levaram ao desenvolvimento de dispositivos muito sofisticados. Além dos clássicos pacemakers, hoje dispomos de desfibriladores, ressincronizadores que ajudam não só a melhorar a qualidade de vida, como também impedem a evolução da doença e reduzem a mortalidade. 

A Cardiologia é uma especialidade multidisciplinar, mas, ao mesmo tempo, muito complexa, o que, muitas vezes, exige uma colaboração com profissionais de outras especialidades. Diria que está a haver uma crescente colaboração entre profissionais de diferentes especialidades na área da saúde?   

Os profissionais estão em crescente subespecialização ao mesmo tempo que os doentes estão a viver mais e com múltiplas comorbilidades, pelo que não há hipóteses de fazer boa medicina se não for em estreita colaboração entre profissionais da especialidade de cardiologia e de outras especialidades. Quando me refiro a profissionais, não estou a falar exclusivamente de médicos, refiro-me a médicos, enfermeiros e técnicos.  

Já discutimos as ambições relativamente à investigação e formação. Mas, em relação a outros aspetos, quais são os planos e objetivos que a nova direção da SPC estabeleceu para o biénio 2023-2025 nomeadamente se têm algum projeto ou evento específico que estejam a preparar para o futuro próximo? 

Confesso que com o início do meu mandato não anunciei nenhuma bandeira de projetos disruptivos apenas para mostrar que pretendia ser diferente. Herdamos uma sociedade científica com muitas décadas e muito sólida, mas que necessita de reforçar as suas estruturas para poder encarar o futuro. É nisso que estamos a trabalhar. O ensino, a investigação e a abertura à comunidade são atividades que há muito se realizam na SPC, mas neste momento há que reformular muito do que vinha a ser feito, de forma a podermos manter a sustentabilidade da SPC.  

Não posso deixar de recordar que as doenças cardiovasculares representam, na Europa, a principal causa de morte, representando 36% do total da mortalidade. O mais impressionante é que 20 dessas mortes são prematuras, antes dos 65 anos, e em muitos casos poderiam ser evitadas pela prevenção, como também pelo tratamento e pela reabilitação. A SPC tem que lutar para conseguir colocar esta temática no topo da agenda, não só da comunidade, como também dos media e da tutela. Presentemente, o Parlamento Europeu criou estruturas que tentam fazer chegar esta mensagem aos decisores, porque todos estamos convencidos de que esta é uma patologia onde mais facilmente se conseguem ganhar anos de vida e com qualidade. É nossa obrigação não deixar perder esta oportunidade, pelo que estamos a trabalhar na persecução de uma proposta de plano estratégico, a fim de nos apresentarmos como um parceiro ativo na definição nacional e europeia nas doenças cardiovasculares. 

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