“Na prática clínica diária não há doenças, há doentes”

A Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC), fundada nos anos 50, tem como missão intervir ativamente em projetos clínicos e de formação dirigidos à comunidade, através da organização regular de programas de formação e desenvolvimento profissional na área. Manuel Branco Ferreira, atual presidente da SPAIC, revela quais os obstáculos desta especialidade encontrados dentro do SNS.

Perspetiva Atual: Tomou posse da presidência da SPAIC em dezembro de 2019 e está prestes a passar o testemunho ao seu sucessor. Qual foi a maior batalha enquanto presidente da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica?

Manuel Branco Ferreira: Este triénio 2020-22 fica indelevelmente marcado pela pandemia SARS-CoV2, a qual constituiu talvez a maior batalha. A SPAIC teve de lutar para manter ativos todos os programas de formação habituais, tendo ainda criado novos canais formativos e de contacto com os associados, com o objetivo de manter a atividade formativa regular da nossa Sociedade Científica, estimulando também os sócios a continuar a produzir e a divulgar conhecimento científico de elevada qualidade, na área da Alergologia e Imunologia Clínica. Neste sentido foram criados novos prémios para investigação científica, um deles exclusivo para este triénio (Bolsa Palma Carlos) com um valor próximo dos 50.000 euros, que foi possível graças ao esforço da nossa Sociedade e de muitos dos nossos parceiros e apoiantes.  Em tempos onde os médicos foram chamados muitas vezes a cumprir trabalho médico fora do âmbito da sua especialidade, pensámos que seria particularmente importante conseguirmos estimular a investigação na nossa área da especialidade e esta foi uma das formas que foi implementada com sucesso.

PA: Quando tomou posse da presidência da SPAIC afirmou que tinha diversas perspetivas de colaborações com outras Sociedades, quer internacionais, quer nacionais, de outras especialidades e de Alergologia. Que colaborações desejadas conseguiu estabelecer durante o seu mandato e quais os seus objetivos?

MBF: Mantivemos colaborações institucionais com as Sociedades Portuguesas de Pneumologia, de Oftalmologia e de Otorrinolaringologia, com a participação nas reuniões principais das respetivas especialidades.  A nossa relação com a Medicina Geral e Familiar também se tem vindo a consolidar ao longo dos últimos anos, inclusive neste triénio. Mantivemos estreitas relações de colaboração com a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia Clínica, com a participação cruzada nas nossas reuniões científicas, com o desenvolvimento de mesas conjuntas e, ainda, com a realização do congresso luso-brasileiro durante a próxima reunião da ASBAI, que se vai realizar em novembro de 2022. De igual forma mantivemos as relações institucionais com a Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica e com a World Allergy Organization, colaborando ativamente em vários dos programas educacionais e de divulgação, como o dia mundial da alergia ou a semana mundial da alergia.

No entanto, o maior incremento em termos de colaboração foi sem dúvida com a Sociedade Espanhola de Alergia e Imunologia Clínica, com a assinatura de um convénio de colaboração, em que uma das faces mais visíveis será a realização de uma reunião ibérica conjunta que será realizada alternadamente em Espanha e Portugal e que constituirá um fórum de discussão entre especialistas que partilham uma sólida formação médica e científica a uma ampla prática clínica.

PA: Sente que a patologia alérgica tem merecido cada vez mais a atenção dos media e das pessoas?

MBF: Sim. Creio que o público em geral está mais ciente de que as alergias são situações comuns, tanto em crianças como em adultos e mesmo em idosos, e que são os alergologistas os profissionais mais capacitados para as tratar e dar uma resposta adequada, quer em termos de saber o que evitar, saber que medicamentos usar e eventualmente decidir se são ou não indicadas estratégias de vacinação contra as alergias. Também há uma maior consciencialização de que as alergias têm tratamento, que há algo que se pode fazer no doente alérgico e que pode transformar a sua vida, devolvendo-lhe muita da normalidade perdida.

Foi particularmente nítida, no processo de vacinação contra o SARS-Cov2, a importância fulcral da avaliação pelos alergologistas dos inúmeros doentes com antecedentes suspeitos e que não teriam podido receber estas vacinas sem a avaliação alergológica e as adaptações terapêuticas, que foram implementadas quando se justificavam.

PA: Quais são os principais obstáculos encontrados por um paciente com patologia alérgica dentro do nosso Sistema de Saúde?

MBF: Apesar de existir uma rede de referenciação hospitalar de Imunoalergologia, e apesar de nos últimos anos se terem conseguido abrir várias unidades de Imunoalergologia fora dos grandes centros universitários, a maior parte dos hospitais públicos ainda não tem qualquer atendimento alergológico especializado, existindo muitas vezes médicos de outras especialidades que assumem esse encargo, mas que na realidade não têm a preparação mais adequada para assegurarem cuidados imunoalergológicos da mais elevada qualidade à população. Voltamos sempre ao mesmo ponto, que é a escassez de recursos médicos no SNS, que apesar de formar mais de 20 novos especialistas em Imunoalergologia a cada ano, não chega a reter 30% destes especialistas altamente qualificados, que assim ficam disponíveis para horários completos em unidades de saúde privadas, onde podem crescer exponencialmente, como aliás tem sucedido ao longo dos últimos anos.

Um segundo obstáculo, que obviamente se relaciona com o primeiro, é uma baixa referenciação de alguns doentes graves à Alergologia, sendo que não é raro estes doentes ficarem medicados com comprimidos de cortisona durante longos períodos, o que pode resultar num elevado prejuízo para a saúde dessas pessoas, sem se tentarem outras medidas terapêuticas.

PA: Quais os próximos passos que deveriam ser dados para possibilitar uma maior evolução da especialidade em Portugal?

MBF: Creio que terá de haver um maior número de especialistas a trabalhar no SNS e dever-se-á proceder à implementação de redes colaborativas entre diferentes hospitais da mesma área geográfica, porque não é lógico que todos os hospitais façam tudo, já que esse é um facto que não permite um desenvolvimento adicional que decorre de um maior foco e de um maior número de doentes em determinadas áreas.

Por outro lado, campos como os da alergia alimentar ou da alergia medicamentosa, que se encontram em fase de grande expansão em termos de número de doentes afetados, necessitam em absoluto de hospitais de dia eficazes, dinâmicos e com grande capacidade de adaptação, o que é algo que muitas vezes não existe no nosso SNS, por falta de instalações, de enfermeiros ou até de administrativos. Sem um bom hospital de dia de Imunoalergologia, estas duas áreas (assim como a área das imunodeficiências) estão condenadas a não evoluírem tanto como poderiam, o que é realmente uma pena e uma fonte de frustração para os profissionais envolvidos.

PA: Depois de dois anos com uma interrupção forçada, a 43ª Reunião Anual da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica vai decorrer este ano de 6 a 9 de outubro, no Porto, no Centro de Congressos do Porto Palácio. O que nos pode revelar acerca do tema deste congresso, dos convidados e dos debates que irão decorrer?

MBF: Na verdade, em 2020 e 2021 mantivemos as nossas reuniões, no entanto, foram obrigadas a ocorrer em formato virtual. Já em 2022, realizámos a Reunião da Primavera na Figueira da Foz em formato híbrido e agora a nossa Reunião Anual de 2022 em modelo já 100% presencial.

Este ano o tema deste nosso congresso inspirou-se na postura clínica dos alergologistas, que é muito mais focada no doente no centro dos cuidados alergológicos do que na doença, o que é fácil de entender porque qualquer alergologista com experiência sabe que no campo da alergia, as mesmas alergias têm manifestações muito díspares em diferentes doentes, podendo gerar diferentes doenças e, inclusivamente as mesmas doenças podem ter queixas completamente diferentes de um doente para outro doente. É óbvio que por uma questão de sistematização temos de falar em doenças, mas na prática clínica diária não há doenças, há doentes. Não há alergias, mas sim pessoas com uma resposta desajustada do seu sistema imunitário a diferentes substâncias do seu meio ambiente, que deviam ser perfeitamente bem toleradas, mas que não o são. É à volta das várias particularidades das pessoas com alergia que todo o congresso se irá desenrolar. Contamos com a presença dos mais reputados especialistas nacionais e com alguns especialistas internacionais em várias áreas, havendo sessões onde se esperam debates vivos como os workshops práticos e as sessões Meet The Professor, que irão versar sobre diferentes áreas da Alergologia.

Reunião da Primavera

PA: Durante os dias do congresso também irá ocorrer a eleição dos novos corpos sociais da SPAIC. Tem alguma previsão ou expectativa para estas eleições?

MBF: Creio que, em todas as sociedades científicas, deve sempre haver um espírito de renovação democrático e saudável. Nesse aspeto faço votos para que as eleições sejam muito participadas, o que refletirá o envolvimento e o interesse dos sócios na vida da Sociedade.  O ideal seria que existissem sempre diferentes listas com diferentes pessoas e diferentes ideias para o futuro da sociedade, mas o problema é que nem sempre há um grande número de sócios que esteja na disposição de abdicar de muito do seu tempo em prol da sociedade, sem qualquer compensação monetária, o que muitas vezes leva a que só exista uma lista candidata.  De qualquer forma, esta é uma situação que também tem vantagens pois não gera desunião entre vencedores e vencidos e, por outro lado, leva a que haja uma linha de continuidade entre a Direção cessante e a Direção entrante, já que há sempre algumas pessoas que permanecem entre uma e outra.

PA: Como se sente ao deixar o lugar de Presidente da SPAIC e que mensagem deixa ao seu sucessor?

MBF: É já um cliché nestas alturas dizer-se que se sai com a sensação do dever cumprido e eu não sou exceção. Creio ter dado o meu melhor à SPAIC e espero ter correspondido às expectativas da maior parte dos sócios. Seguramente poderia ter feito mais e o papel de intervenção da SPAIC na sociedade civil e nas políticas de saúde deve ser reforçado e estou certo que as próximas Direções irão trabalhar nesse sentido. Também creio ser fundamental impulsionar uma colaboração mais estreita com as associações de doentes, que nestes últimos anos se têm vindo a tornar mais dinâmicas. Este foi um aspeto que foi um pouco começado nesta direção, mas que pode ser muito mais desenvolvido.

À pessoa que irá, a partir de 2023, assumir as funções de Presidente da nossa Sociedade e aos restantes elementos que farão parte dessa Direção desejo os maiores sucessos, estando certo que, com trabalho e com um esforço de congregação do valor de todos os nossos sócios, a SPAIC, que no presente já é reconhecida como uma sociedade com um grande dinamismo, terá cada vez mais um futuro promissor, em paralelo com o futuro promissor das pessoas com alergias que podem e devem receber os melhores e mais especializados cuidados alergológicos, que mudem as suas vidas para melhor.

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