Os avanços científicos e tecnológicos na área da Gastrenterologia
Criado em 1984, o Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais tem como missão fundadora garantir as melhores condições de trabalho aos seus profissionais. Atualmente, quase 40 anos depois, o seu papel continua o mesmo, no entanto, agora pelas mãos de Isabel Medeiros, assume uma ação mais interventiva ao nível da gestão em saúde.
Perspetiva Atual: Assumiu a presidência do NGHD em 2021, 37 anos após a sua fundação. Qual é a missão que o Núcleo assume atualmente na saúde em Portugal? É possível afirmar que é a mesma desde o seu nascimento?
Isabel Medeiros: O Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais (NGHD) foi fundado em 1984, sendo uma associação de caráter científico, sem fins lucrativos agregando médicos maioritariamente gastrenterologistas a trabalhar em Hospitais de dimensões mais pequenas, na altura, designados como Hospitais Distritais.
Passados 38 anos sobre a sua fundação, os seus princípios mantêm-se atuais e diria mesmo, cada vez mais pertinentes.
À data da sua fundação, o desiderato do NGHD era garantir e promover as melhores condições de trabalho dos seus profissionais, independentemente do Hospital onde exerciam a sua atividade. Esta qualidade seria refletida numa prestação de excelência à população, quer facilitando o acesso a cuidados de saúde, quer pela adequação e diferenciação dos mesmos.
Esta missão continua tão atual como então, sobretudo quando assistimos ao atual estado da saúde no país, à degradação crescente dos serviços com a desmotivação dos seus profissionais refletida na saída de inúmeros elementos.
O NGHD pela agregação de vários profissionais, não exclusivamente médicos, mas profissionais ligados à gastrenterologia como enfermeiros, nutricionistas e anatomopatologistas, está em posição privilegiada – e deve assumi-la – para ser um agente ativo e propulsor das mudanças que gostaríamos de ver na saúde em Portugal e, em particular, na nossa Especialidade.
Enquanto atual Presidente da Direção do NGHD, com mandato até 2024, gostaria de contribuir com a visão de quem trabalha em zonas menos privilegiadas, comparativamente aos grandes centros hospitalares, para sermos agentes de mudança participando, conjuntamente com outros parceiros, na elaboração de propostas que visem uma melhor articulação dos recursos de saúde.
A carência de médicos Gastrenterologistas residentes no interior do país, acrescido com a crónica falta de investimento nos serviços, leva a que algumas zonas geográficas não recebam o apoio necessário ou com a qualidade que se exige, ficando longe dos ratios mínimos e considerados adequados pelas Redes de referenciação em Gastrenterologia, assumidas pela tutela e há muito desajustadas e desatualizadas
A título de exemplo, toda a região do Alentejo (Distrito de Portalegre, Distrito de Évora, Distrito de Beja e alguns concelhos do Litoral Alentejano), correspondendo a cerca de 1/3 do território nacional e a cerca de 500 000 mil habitantes, tem atualmente 3 gastrenterologistas no SNS. Outros exemplos se poderiam citar na faixa interior do pais, onde há zonas sem Gastrenterologia (como Bragança) e outras zonas com recursos insuficientes (Guarda, Covilhã, Centro Hospitalar do Oeste, Centro Hospitalar do Medio Tejo, entre outros).
Estamos numa posição privilegiada para alertarmos a tutela para esta situação, uma vez que somos o garante da assistência gastrenterológica a cerca de 75% da população portuguesa, sendo necessárias medidas que facilitem a fixação de médicos e outros profissionais, que cativem recém-especialistas a ficarem no SNS, caso contrário, o futuro do SNS como garante de assistência médica de carácter universal estará comprometido.
PA: Relativamente à especialidade praticada no NGHD, a Gastrenterologia, como vê os avanços científicos no nosso país e no mundo nos últimos anos? Há alguma técnica inovadora que gostaria de destacar?
IM: A Gastrenterologia tem assistido nos anos recentes a um avanço científico e tecnológico notável, permitindo tratar mais doentes e com melhores resultados.
A descoberta de novos fármacos com eficácia comprovada em várias doenças é exemplo disso, destacando-se a possibilidade de cura para a Hepatite C, evitando muitos casos de evoluírem para cirrose hepática, cancro do fígado e morte e a utilização de novas moléculas no tratamento das chamadas Doenças Inflamatórias Intestinais, como a Colite Ulcerosa ou a Doença de Crohn, onde o controlo destas entidades se tornou possível e, em muitos casos com períodos longos de remissão da doença.
Do ponto de vista tecnológico a diferenciação da Gastrenterologia tem sido notória, permitindo a resolução de várias patologias, muitas delas até agora só possíveis recorrendo à cirurgia. Saliento a título de exemplo a resseção cada vez mais ambiciosa de lesões polipoides do cólon ou estômago, recorrendo à Disseção Endoscópica da Submucosa
Outra área de contínuo avanço são as técnicas referentes ao diagnostico e tratamento das doenças das vias biliares – cálculos das vias biliares, tumores -com o recurso a colangioscopios descartáveis ou o recurso à Ecoendoscopia, técnica que combina a imagem endoscópica associada à imagem ecográfica
A Ecoendoscopia tornou-se nos últimos anos uma técnica incontornável para o diagnostico, terapêutica e estadiamento de várias lesões desde o esófago, estomago, pâncreas e cólon.
PA: A investigação é sempre uma vertente muito importante na área da saúde e promover a investigação científica na área da Gastrenterologia é uma das principais funções do NGHD. Como é que esta promoção é realizada?
IM: A investigação científica é um dos pilares da atividade do NGHD. Desde a sua fundação, o Núcleo promove ativamente a investigação científica, sobretudo com a realização de estudos epidemiológicos dando a conhecer a realidade nacional no que concerne às doenças do foro da gastrenterologia
Atualmente tem-se alargado este âmbito, com a implementação de estudos onde participam vários centros afiliados no NGHD, contribuindo para a formação de jovens especialistas e para o avanço científico.
A atual direção elegeu um novo Conselho Científico, órgão encarregue da implementação de novos estudos científicos, após a sua aprovação em reunião de direção e divulgação pelos hospitais afiliados.
PA: A reunião anual do NGHD deste ano, organizada pelo Hospital S. Bernardo de Setúbal, vai decorrer nos dias 21 e 22 de outubro no Hotel Aqualuz, em Tróia. Qual é o objetivo destas reuniões anuais? Quais os principais temas debatidos nesta reunião e como são escolhidos?
IM: A Reunião Anual do NGHD é de certa forma o ponto alto de toda a nossa atividade.
Pretende reunir a comunidade gastrenterológica, sendo aberta a todos os médicos ou outros profissionais ligados de alguma forma à gastrenterologia – Cirurgiões, anatomopatologistas, nutricionistas, farmacêuticos, enfermeiros.
É o momento de eleição para a apresentação dos trabalhos científicos enviados e selecionados para apresentação dos nossos hospitais e para discutir entre pares os temas de atualidade científica e de gestão hospitalar, maioritariamente.
A este propósito, na edição de outubro de 2022 está contemplado um período para discussão da urgência em Gastrenterologia. Uma das mesas redondas vai ser dedicada ao serviço de urgência gastrenterológica em Portugal e na Europa, apresentando-se uma proposta de modelo organizacional.
Desta discussão pretende-se elaborar um documento com propostas a ser entregue à tutela e à Ordem dos Médicos/Colégio da Especialidade.
PA: Relativamente a convidados nacionais e estrangeiros, podem-nos revelar alguns nomes que marcarão presença e o porquê da escolha destes profissionais?
IM: Uma das convidadas da edição deste ano, é a Profª Helena Cortez Pinto, Presidente da United European Gastroenterology, associação europeia de Gastrenterologia, e que nos vem dar a sua contribuição no que pretende ser a evolução da Gastrenterologia em Portugal e na Europa, no futuro próximo
A Gastrenterologia tem-se tornado numa especialidade cada vez mais interventiva, com procedimentos de complexidade crescente, sendo o risco de complicações um fator presente na nossa atividade diária, razão pela qual a comissão organizadora da Reunião considerou pertinente a abordagem dos aspetos jurídicos das complicações em endoscopia digestiva.
De salientar igualmente a parceria que a nossa organização mantem com a sua congénere francesa – Association Nationale des Hépato-gastroentérologues des Hôpitaux Généraux – estando presentes na reunião portuguesa, médicos franceses a apresentar comunicações selecionadas.
PA: O Curso Anual de Gastrenterologia e Endoscopia Digestiva para enfermeiros também já tem data marcada para 20 de outubro. Em que consiste este curso, como funciona e quem se pode inscrever?
IM: O Curso Anual de Gastrenterologia e Endoscopia Digestiva para Enfermeiros (CAGEDE) vai na sua 9ª edição e surgiu da necessidade de criar um curso na área da enfermagem em Gastrenterologia, que fornecesse uma atualização e revisão de procedimentos na vertente de enfermagem e numa área em constante evolução.
Existiam já alguns conteúdos dirigidos aos enfermeiros noutras reuniões de gastrenterologia, nomeadamente na Semana Digestiva, mas rapidamente o CAGEDE se tornou um curso reconhecido pela sua qualidade e mais-valia formativa para os enfermeiros que trabalham em Serviços de Gastrenterologia, discutindo-se critérios de idoneidade formativa em enfermagem na área da gastrenterologia e dentro dos Centros de Responsabilidade Integrada.
Trata-se de um curso que decorre ao longo de um dia (10 horas formativas), onde são revistos temas dentro de quatro áreas – Gastrenterologia, Hepatologia, Endoscopia e Qualidade. Coexistindo com os temas em discussão, funcionam workshops de caráter prático e apresentações orais de trabalhos elaborados pelos enfermeiros.
PA: Ainda tem dois anos de mandato pela frente. Que planos da sua estratégia já conseguiu concretizar e que projetos ainda se encontram na “lista de desejos” desta direção?
IM: Gostaria que fossemos capazes de, em conjunto, encontrar soluções que contribuíssem para a resolução das dificuldades vividas por muitos serviços de Gastrenterologia que ao longo dos anos fizeram um esforço de modernização, refletindo-se na carteira de serviços oferecida e que novamente assistem a um declínio assistencial fruto de várias condicionantes- falta de meios humanos e de investimento tecnológico, desestruturação dos serviços fruto da pandemia, ausência de resposta às listas de espera agravadas com a pandemia e desgaste/desmotivação dos profissionais.
Sendo uma organização representativa de aproximadamente 300 gastrenterologias, penso que devemos reunir esforços e apresentar as soluções possíveis para melhorar a distribuição dos recursos, a resposta eficaz aos serviços de urgência contribuindo com a apresentação de novos modelos de organização.
A par de uma ação mais interventiva ao nível da gestão em saúde, manteremos a função científica que preside ao Núcleo, estimulando a realização de estudos científicos, premiando os melhores projetos de investigação com uma Bolsa de Investigação e mantendo a Reunião Anual.